Câmara aprova Marco Legal do Combate ao Crime Organizado com penas de até 66 anos

Câmara aprova Marco Legal do Combate ao Crime Organizado com penas de até 66 anos

A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira, 18 de novembro de 2025, o que pode ser o mais duro pacote de medidas contra o crime organizado da história recente do Brasil. Com 370 votos a favor, 110 contra e 3 abstenções, o Marco Legal do Combate ao Crime Organizado — conhecido como PL Antifacção — passou por plenário em Brasília, transformando a forma como o país enfrenta facções, milícias e grupos ultraviolentos. A aprovação foi acompanhada por aplausos no plenário, mas também por críticas profundas de autoridades que temem efeitos colaterais nas investigações federais. O projeto, que agora segue para o Senado Federal, cria penas de até 66 anos de prisão, autoriza gravação de conversas entre presos e advogados e permite bloqueio de bens antes da condenação — tudo isso sem direito a fiança ou anistia.

Um projeto que mudou de pele

O texto original, enviado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública em outubro de 2025, era um esforço do governo Luiz Inácio Lula da Silva para dar mais ferramentas à Polícia Federal e à Receita Federal. Mas a versão aprovada não tem quase nada do que foi proposto. Foi o relator, deputado Guilherme Derrit (Progressistas-SP), quem reescreveu o projeto seis vezes, ampliando penas, restringindo direitos e criando mecanismos que nem o Executivo havia imaginado. "Estamos aqui votando favoravelmente porque temos um relator que consertou uma redação", disse Derrit durante a votação, numa clara alusão ao fato de que o governo perdeu o controle do texto. O resultado? Um projeto mais agressivo, mas também mais controverso.

Penas que assustam — e podem ser ineficazes

O novo marco legal define como hediondos todos os crimes cometidos por organizações criminosas. Homicídio doloso? Até 40 anos. Sequestro, roubo, extorsão? Agora são crimes de reclusão, não mais detenção. E se o acusado for líder da facção? A pena pode saltar para 66 anos — o dobro do máximo anterior em muitos casos. O texto também proíbe progressão de pena para integrantes de facções, mesmo que cumpram boa parte da pena. "É uma resposta dura", disse o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanoss-SE). "Hoje, a Câmara faz história. Entregamos uma resposta dura contra os criminosos."

Mas aqui está o paradoxo: enquanto o governo queria fortalecer a PF e a Receita, o projeto aprovado limita sua atuação. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi direto: "O PL Antifacção aprovado pela Câmara asfixia PF e Receita." Por quê? Porque obriga a Polícia Federal a dividir recursos apreendidos com forças estaduais — mesmo quando a investigação foi inteiramente federal. Além disso, cria um banco de dados nacional sobre facções, mas exige que estados contribuam com informações que muitos não têm estrutura para coletar. "É como pedir a um posto de saúde que faça uma ressonância magnética", comparou um ex-chefe da PF, sob anonimato.

Gravações, bloqueios e o fim da privacidade

Gravações, bloqueios e o fim da privacidade

Um dos pontos mais polêmicos é a autorização para gravar conversas entre presos e seus advogados — algo que viola o princípio constitucional da confidencialidade da defesa. O relator justificou: "É necessário para desarticular redes de comando das facções dentro das prisões." Mas especialistas em direitos humanos alertam: isso pode levar à tortura indireta, ao silenciamento de denúncias e à destruição da confiança entre réu e defensor. "Se o advogado não pode falar em segurança, quem vai denunciar abusos?", questiona a advogada Cláudia Mendes, da Rede Nacional de Defensores Públicos.

O projeto também permite o bloqueio de bens de suspeitos ainda durante a investigação — sem necessidade de condenação. Isso já ocorre em alguns estados, mas agora vira regra nacional. A ideia é desmantelar o poder econômico das facções, mas pode gerar abusos. Em São Paulo, por exemplo, já houve casos de empresários cujos bens foram bloqueados por ligação tênue com facções, e que só tiveram os bens devolvidos anos depois — quando a acusação caiu por falta de provas.

O que vem a seguir: o Senado e a sanção

Agora, o projeto vai para o Senado Federal, onde será relatado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), conhecido por sua postura técnica e rigor jurídico. Vieira já sinalizou que não aceitará tudo como veio da Câmara. "Não podemos transformar a luta contra o crime em um estado de exceção", disse em entrevista recente. A expectativa é que ele proponha alterações nos pontos que violam direitos fundamentais — especialmente as gravações e o bloqueio de bens.

Se o Senado aprovar o texto tal como está, a sanção presidencial de Lula da Silva será inevitável — mas não sem resistência. O governo já demonstrou que não concorda com o rumo do projeto. Pode vetar trechos — ou, em última instância, recorrer ao Supremo Tribunal Federal para questionar a constitucionalidade de cláusulas específicas.

Um país dividido, mas com um inimigo comum

Um país dividido, mas com um inimigo comum

O que une deputados de direita e esquerda, governistas e opositores, é a frustração com a violência. Em 2024, mais de 50 mil pessoas foram assassinadas no Brasil — quase 140 por dia. As facções controlam 70% das prisões e 40% das favelas do Rio e de São Paulo, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A população quer resposta. Mas será que prisões mais longas e menos direitos resolvem? Ou apenas escondem o problema?

Na periferia de Manaus, onde uma facção controla o tráfico de drogas e a venda de gás de cozinha, moradores dizem que a polícia só aparece depois que alguém morre. "Se o governo quiser realmente acabar com isso, precisa investir em educação, emprego, saúde. Não só em cadeia", diz Maria Silva, 42, mãe de três filhos. Ela não sabe se o projeto vai funcionar. Mas sabe que, se nada mudar, o filho mais novo vai crescer num mundo onde a lei é escrita pelos criminosos.

Frequently Asked Questions

Quais crimes passam a ser considerados hediondos com o novo marco legal?

Com o novo texto, todos os crimes cometidos por organizações criminosas — como homicídio, sequestro, extorsão, roubo, ameaça e explosão de bancos — passam a ser classificados como hediondos. Isso significa que os réus perdem direitos como fiança, anistia, indulto e progressão de pena. A classificação vale mesmo para crimes menores, se cometidos em contexto de facção ou milícia.

Por que o ministro Fernando Haddad criticou o projeto?

Haddad argumenta que o projeto impede a Polícia Federal e a Receita Federal de atuar com autonomia, obrigando-as a dividir recursos apreendidos com polícias estaduais, mesmo quando a investigação foi inteiramente federal. Além disso, a burocracia para acessar dados e a exigência de colaboração de estados sem estrutura podem travar operações complexas contra lavagem de dinheiro e sonegação fiscal.

É legal gravar conversas entre presos e seus advogados?

Legalmente, essa prática viola o princípio da confidencialidade da defesa, garantido pela Constituição. Embora o projeto autorize as gravações como medida de combate ao crime organizado, especialistas jurídicos afirmam que isso pode ser derrubado pelo Supremo Tribunal Federal. A prática já foi questionada em outros países e, em muitos casos, foi considerada inconstitucional por comprometer o direito ao silêncio e à assistência jurídica.

O projeto vai realmente reduzir a violência?

Não há garantia. Países como os EUA e a Itália já adotaram penas severas contra facções, mas a violência persistiu — ou até aumentou, com novas alianças entre grupos. Estudos do IPEA mostram que, no Brasil, o aumento da população carcerária nos últimos 20 anos não reduziu os índices de homicídio. A eficácia do projeto dependerá de investimentos em inteligência, policiamento preventivo e políticas sociais — que o texto não prevê.

Quem vai controlar o banco de dados nacional sobre facções?

O banco será gerido pela Polícia Federal, mas exige dados de todos os 26 estados e do Distrito Federal. A grande questão é que muitas polícias estaduais não têm sistemas digitais adequados, nem pessoal treinado. Isso pode levar a informações desatualizadas, duplicadas ou até falsas — o que prejudicaria investigações e poderia gerar erros judiciais. A falta de padronização é um risco real.

O que pode mudar no Senado?

O relator no Senado, Alessandro Vieira, já indicou que pode revisar os pontos que violam direitos fundamentais, como as gravações de conversas com advogados e o bloqueio de bens sem condenação. Ele pode propor emendas para limitar a divisão de recursos ou exigir mais transparência nos bancos de dados. A expectativa é que o texto final seja mais equilibrado — mas ainda assim mais rígido que o original do governo.